Crítica do livro O livreiro de Cabul

A herança da ignorância

A questão da superioridade masculina encontra-se ainda tão entranhada no mundo que raras vezes é examinada. Em um país como o Afeganistão, dominado por costumes e leis pré-históricas, a liberdade é uma condição impensável para a mulher. Com “O livreiro de Cabul”, Asne Seierstad trás a luz do ocidente um retrato das contradições extremas deste país, onde dignidade é uma palavra que não cabe no vocabulário de fundamentalistas quando diz respeito à condição feminina.
O livro conta uma história de opressão e lança um olhar crítico sobre a cultura afegã, em particular sobre a segregação das mulheres. Asne, jornalista norueguesa, estava há seis meses no Afeganistão cobrindo a guerra que culminou na queda do regime Talibã, quando conheceu Sultan Khan (nome fictício), um importante livreiro da cidade de Cabul. A jornalista conheceu a família e a casa do livreiro, onde teve a oportunidade de morar por três meses. Do convívio, no qual observou as características daquele grupo, ela descobriu o lado íntimo de um homem afegão, seus princípios e sua família. Na companhia do livreiro, duas esposas, cinco filhos, e outros parentes, Asne dividia um pequeno apartamento de quatro cômodos, que foi o laboratório de pesquisa para que ela colhesse relatos sobre suas infâncias, casamentos, desilusões e as memórias de guerra de uma cidade devastada.
Escondida sob uma burca, usual mesmo depois da queda do regime, a jornalista norueguesa conseguiu circular incógnita em ônibus, mercados, e pôde andar com segurança por Cabul, registrando um cenário impregnado pelas marcas da guerra e humilhações sofridas pelas mulheres afegãs.
O livro é uma grande reportagem com uma narrativa na qual Asne usa o estilo de linguagem do jornalismo literário, especialização do jornalismo feito com a arte da literatura, também conhecido como literatura da realidade. A obra mostra muitos tipos humanos interessantes e um choque brutal de civilizações. Um dos objetivos da reportagem é mostrar até que ponto o Afeganistão é uma sociedade patriarcal, mesmo após a queda do Talibã, um regime de uma rigidez absoluta, ditado por tradições que condicionam a vida de todos. Em uma sociedade onde a maior parte dos jovens vive sob a tirania dos pais, o controle da religião, e se sentem oprimidos pela falta de perspectivas, não é de se estranhar a aptidão para o terrorismo. Mulheres que se submetem a casamentos arranjados, limitações para estudar, trabalhar, se comunicar com os outros e maridos poligâmicos, mostram a realidade de como é ser mulher naquele pequeno mundo. O próprio Sultan Khan, que a princípio mostrou-se à jornalista como um homem aparentemente liberal, revelou-se um radical e doutrinador chefe de família.
E assim, durante três meses e “protegida” pela burca, a jornalista conheceu todos os segredos e as grandes desilusões de um cotidiano familiar de histórias de opressão, submissão e morte. Neste ponto a obra é um referencial sobre a cultura afegã. É inevitável não se chocar com a diferença de culturas e com a passividade e indiferença em todas aquelas mulheres por trás de burcas. Burcas que escondem os sonhos de mulheres que apenas querem viver e trabalhar livremente, e não conhecem outra realidade que a de suas vidas vazias. Se por um lado não há imparcialidade, visto que o livro se limita à observação daquela realidade de um ponto de vista feminino, por outro não há como escapar à parcialidade. Fechamos o livro com a impressão de que a realidade do Afeganistão serve apenas para compreender os homens um pouco mais.