Você sabe com quem está falando?

Ser brasileiro é viver indignado. Motivos não nos faltam para isso. E nada mais brasileiro do que a expressão: "você sabe com quem está falando?"
Este velho e conhecido chavão, também entendido como “carteirada”, teve uma forte ascensão durante o governo militar, e é um desvio de comportamento cuja prática remonta à cultura do início da formação do país e aos quase 400 anos de domínio senhorial. Escravocratas, barões e coronéis sempre evocaram a frase, caso determinada situação não estivesse de acordo com seus caprichos ou interesses. Gilberto Freyre fez uma análise detalhada disso em seu clássico Casa Grande e Senzala. Esta conduta é geralmente adotada por indivíduos arrogantes e prepotentes que fazem uso da intimidação e valem-se do cargo ou função que exercem ou ocupam.
Irmã do "jeitinho brasileiro" a carteirada, ainda que possa parecer inofensiva e insignificante, é um empecilho à consolidação democrática. Isso se formos fazer uma análise sociológica da questão, porque se levarmos no popular, o nome é covardia mesmo.
A expressão é uma afirmação da desigualdade e da falência da ética perante o poder, e serve de senha para os que pretendem se colocar numa casta de seres superiores, que gozam de privilégios acima de regras morais e éticas. É claro que uma eventual inobservância dessas regras pode acontecer com qualquer um de nós, no entanto, acho mesmo, é que esses “senhores de engenho”, que exigem tratamento diferenciado, sofrem de um mal que assola a sociedade brasileira: o mal-caratismo. Quando era mais jovem concordava que o maior mal no Brasil era a desigualdade social. Com o passar do tempo amenizei esta convicção e percebi que o problema do brasileiro é o mal-caráter. Todos os outros problemas giram em torno deste. O deputado, o policial, o diretor de escola, o síndico do prédio, o gerente de banco, todos se apegam ao poder para sobrepor-se aos outros como um náufrago se apega a uma bóia de sobrevivência.
Presenciamos e assistimos através da mídia, inúmeros casos de ”você sabe com que está falando?”. A guarda de trânsito Rosimeri Dionísio, no Rio de Janeiro, ao fazer cumprir a lei, acabou recebendo uma punição inusitada: foi parar na delegacia e autuada, depois de multar o carro do filho de um desembargador estacionado em local proibido no bairro de Copacabana. O desembargador era o renomado jurista Eduardo Mayr, que alegou desacato à autoridade e abuso de poder para fazer o registro de ocorrência contra a guarda. Em 2007, um general do exército deu uma carteirada e interrompeu a decolagem de um vôo da TAM em Campinas. O então general fazia uma viagem particular com a esposa para Brasília. Ao descobrir que o vôo estava com overbooking, disse expressamente ao funcionário da companhia que cuidava do embarque que ele deveria retirar dois passageiros para cederem seus lugares para ele e sua esposa, sob pena de o avião não decolar.
Este país macunaímico não terá caráter enquanto concordarmos por omissão com esta espécie de síndrome de autodivinização presente no nosso cotidiano.Eu que recentemente fui vítima deste tipo de arrogância por parte de um desses “amigos do rei”, observei indignado que até mesmo se você simplesmente demora-se em ceder, o "carteirante" se sente afrontado e vale-se do poder que tem, para prejudicá-lo. Na hora do ocorrido até pensei em sugerir-lhe Gilberto Freyre, mas percebi que seria uma afronta à memória do sociólogo. No meu caso saí vitorioso, pois restou-me a reflexão e a certeza de que a cada indignação, devo intensificar minha civilidade moral e ética no plano individual, e quem sabe isso se reflita no plano coletivo. Se não o fizer por amor ao coletivo social, faço pelos meus filhos, amigos e familiares, que por questão de valores estabelecidos, não precisam de um cartão de visitas que lhe projetem o ego.